domingo, 31 de maio de 2015

Blatter: entre Messias e demônio

Da Tribuna do Norte
Stefan NestlerDeutsche Welle

Joseph "Sepp" Blatter também já jogou futebol: como centroavante, nos anos 60 fez gols para o FC Visp na primeira liga amadora da Suíça. Também foi treinador do clube de sua cidade natal. Na época, ninguém diria que um dia ele seria o mais poderoso dirigente do esporte no mundo. Ele nasceu em 1936 na localidade de Visp, no cantão suíço de Wallis, não muito longe da montanha Matterhorn, como o segundo entre os três filhos de um mecânico de automóveis. Após concluir o curso médio, foi estudar economia e administração de empresas em Lausanne. Inicialmente perseguindo carreira em relações públicas, trabalhou para a Associação de Turismo de Wallis e depois para uma fábrica multinacional de relógios.
vanessa carvalhoJoseph Blatter, ex-centroavante de um time na Suíça nos anos 1960, vai para o quinto mandato na entidade maior do futebol 
Joseph Blatter, ex-centroavante de um time na Suíça nos anos 1960, vai para o quinto mandato na entidade maior do futebol

Aos 39 anos, Blatter começou sua trajetória como dirigente de futebol. O então presidente da Federação Internacional de Futebol (Fifa), o brasileiro João Havelange, o levou para a organização. Na qualidade de diretor dos programas de desenvolvimento, o suíço era responsável pelos campeonatos de juniores, entre outras atividades.

Ele contava também com a proteção de Horst Dassler, filho de Adolf Dassler, o fundador da Adidas. Consta que, durante alguns meses, Blatter teve até mesmo seu salário pago pelo conglomerado de artigos esportivos. Além disso, Dassler disponibilizou para Blatter um escritório na Alsácia.

O empresário alemão teria igualmente "mexido os pauzinhos" dentro da Fifa quando, em 1981, Blatter foi escolhido para ser o secretário-geral, o segundo cargo mais importante da federação internacional. Ele ficou encarregado de negociar os direitos de transmissão televisiva dos Mundiais de futebol e de gerir os contatos com os patrocinadores.

Além disso, participou de algumas mudanças nos regulamentos, como a adoção da "regra dos três pontos", segundo a qual uma vitória vale três pontos, e o empate, apenas um. Blatter tinha fama de competente e comunicativo.

Em 1998, por fim, chegou ao topo. Na sucessão de Havelange à frente da Fifa, conseguiu se impor contra o então presidente da Uefa, o sueco Lennart Johansson. Várias fontes acusam Blatter de ter comprado os votos dos delegados africanos por 1 milhão de dólares. Ele nega a acusação, falando em "ajuda ao desenvolvimento".

Desde então, o presidente da Fifa tem se mostrado extremamente resistente a escândalos. Por mais sérias que fossem as circunstâncias, ele sempre conseguiu sair ileso. E o que não faltou foi escândalo em seus 17 anos de gestão.

O mais crítico para ele foi provavelmente o que envolveu a ISL, parceira de marketing da Fifa, que pagava suborno aos dirigentes do esporte. Isso foi confirmado em juízo, assim como o fato de que, como secretário-geral, o cartola suíço sabia das propinas – descritas por ele como "comissões". Em 2010, finalmente, a Fifa escapou do processo pagando uma soma milionária e declarou Blatter inocente.

Em sua terceira reeleição, em 2011, o dirigente se beneficiou da corrupção no interior da própria federação. Seu adversário, Mohamed bin Hammam, retirou a candidatura ao ser divulgado que ele tentara subornar delegados do Caribe.

Embora o catariano tenha revelado que Blatter sabia das negociações de suborno, a comissão de ética da Fifa exonerou de culpa o presidente, que comentou na época: "Crise? Como assim, crise? A Fifa não está em nenhuma crise. Temos apenas dificuldades."

A comissão de ética também cuidou para que Blatter atravessasse incólume as controvérsias sobre a concessão das Copas do Mundo de 2018 e 2022 à Rússia e ao Catar, respectivamente. Ao contrário do investigador-chefe da Fifa, Michael Garcia, a comissão não constatou qualquer irregularidade nos procedimentos.

Muitos se perguntam como é que Blatter consegue repetidamente se manter fora de todos os apuros. Ele sabe como o poder funciona e o que é necessário para mantê-lo, descarta as críticas externas com um sorriso, esmaga os levantes que acontecem em seu próprio campo, neutraliza os competidores, espera até que os problemas passem sozinhos.

Tudo isso é possível por ele saber que pode confiar quase cegamente em seus seguidores, por contar inteiramente com o respaldo dos cartolas da Ásia, da África e da América Latina. Há 17 anos ele cultiva relações com essas regiões seguindo o princípio do "é dando que se recebe".

"Sou o presidente daqueles que têm que se esforçar mais para conseguir tocar no concerto internacional", disse, certa vez, numa entrevista. "Então sou, por assim dizer, o presidente dos pequenos."

Em muitos países da Ásia, da África e da América Latina, Blatter é cultuado como um "Messias do Futebol", que não só se empenha pelos clubes locais como ainda consegue dinheiro para eles – seja como "ajuda para o desenvolvimento", seja sob outros pretextos.

Assim, por mais que a União das Federações Europeias de Futebol (Uefa) o demonize, os clubes do continente só somam um quarto dos quadros de membros da Fifa – bem menos que a maioria necessária para eventualmente derrubar o polêmico presidente.

Se há algo que o cartola de 79 anos não tem, são dúvidas. Ele não se cansa de proclamar que se encontra em meio a uma missão: "Devido às emoções positivas que o futebol desencadeia, a Fifa é mais influente do que qualquer país da Terra ou qualquer religião" – essa é a crença de Sepp Blatter.

Os negócios da Fifa
Fundada em maio de 1904, a Fifa constitui uma associação nos termos do Código Civil da Suíça. Enquanto entidade de utilidade pública com fins não lucrativos, ela se compromete a reinvestir no futebol todos os seus lucros e reservas, por exemplo, em programas juvenis e de desenvolvimento. Receita e despesa têm que se igualar, não sendo pagos dividendos. Isso é o que consta escrito em seu relatório atual.

Modelo comercialPor ser uma associação, portanto, a Fifa só paga 4% de imposto sobre seus lucros líquidos, a metade do que se cobra das firmas de capital. Isso quando, na realidade, ela é um conglomerado bilionário, que faz dinheiro sobretudo com a Copa do Mundo.

No entanto, enquanto entidade de interesse público, como consta em seu estatuto, a Fifa não pode se dedicar a atividades comerciais. Então de onde vêm as centenas de milhões que ela lucra a cada ano?

Seu modelo comercial é relativamente simples: o país anfitrião de cada Copa é quem arca com todos os custos. Quem se candidata a sediar o evento tem que assegurar total isenção de impostos à Fifa. Em volta dos locais dos jogos se forma uma espécie de oásis fiscal, em que todos os parceiros da entidade estão liberados dos impostos locais sobre renda ou valor agregado.

Especialistas calculam que, desse modo, o fisco da Alemanha, por exemplo, deixou de arrecadar cerca de 250 milhões de euros no Mundial de 2006. O mesmo se aplica à Copa de 2010, na África do Sul, ou à de 2014, no Brasil – ambos países que necessitariam urgentemente de maiores arrecadações.

FaturamentoA fatia mais gorda das rendas da Fifa são os astronômicos direitos de transmissão televisiva, cujo cumprimento é meticulosamente fiscalizado. Em 2014 ela faturou com eles 742 milhões de dólares, além de outros 465 milhões de euros em direitos de marketing.

O relatório comercial da Fifa para 2014 registra uma receita bruta de 1,9 bilhão de dólares. Sobraram 141 milhões de dólares de lucro, elevando as reservas líquidas da federação internacional para o atual 1,52 bilhão de dólares.

O "inventor"A transformação da Fifa em "máquina de fazer dinheiro" ocorreu na Copa sediada pela Alemanha em 1974, ano em que o brasileiro João Havelange assumiu a presidência da organização.

Horst Dassler foi quem introduziu o novo modelo de marketing na Fifa. Filho do fundador da Adidas, Adolf Dassler, e presidente do conglomerado de artigos esportivos de 1985 a 1987, ele reconheceu o potencial comercial da federação internacional e conquistou os primeiros grandes financiadores.

Seu plano foi atrair o interesse de multinacionais dispostas a pagar milhões pelo privilégio de se apresentarem com exclusividade nos Mundiais. Como contrapartida, elas têm destaque da marca nas faixas de publicidade, contingentes grátis de ingressos, condições especiais para convidados da firma e o uso exclusivo do logo da Copa do Mundo.

Os atuais parceiros da Fifa são Adidas, Coca-Cola, Sony, Visa, Emirates e Hyundai/Kia.

GastosDe acordo com o direito suíço de associações, a Fifa também distribui verbas elevadas. Em 2014 ela concedeu 509 milhões de dólares para numerosos projetos de desenvolvimento. As seleções participantes do Mundial no Brasil receberam 385 milhões de dólares, dos quais 35 milhões de dólares foram para os cofres da campeã Alemanha.

'Seppocracia'Tudo é relativo na Fifa. Até mesmo o tempo. "Acho que o tempo que passei na Fifa não é longo", disse Joseph "Sepp" Blatter antes de sua reeleição no 65º congresso da Fifa. Lembrete: este homem está há 40 (!) anos na entidade máxima do futebol mundial.

Em 1975, ele começou como diretor de programas de desenvolvimento. Naquela época, o seu adversário derrotado na disputa pela presidência da Fifa, o príncipe jordaniano Ali bin al-Hussein, não era nem nascido. E não somente neste ponto Blatter tem uma percepção bem própria das coisas.

Anos de corrupção por parte de dirigentes do alto escalão da Fifa? Para Blatter, apenas casos isolados. Indignação pública com o enésimo escândalo na Fifa? Sujeira para a qual a Fifa está sendo arrastada. Assumir a responsabilidade política pelo caso? "Sim, assumo", disse Blatter – mas renunciar por causa disso, nem pensar.

Blatter constrói o seu mundo do futebol do jeito que lhe agrada. E sua "família", como ele chama a Fifa, de fato aceita isso. Para quem vê de fora, é algo completamente incompreensível. Mas, dentro dessa família, as regras simplesmente são outras.

Há quatro anos, estive em Zurique para o congresso da Fifa de 2011. Na época também havia críticas públicas a Blatter e à Fifa – não tão contundentes como as de hoje, mas claramente audíveis. No interior do salão, porém, era tudo paz e amor. Somente a Federação Inglesa de Futebol (FA) ousou tecer algumas críticas a Blatter. Na época, pensei: um mundo paralelo, essa Fifa. Hoje tenho certeza: a Fifa é um universo paralelo.

"Não precisamos de uma revolução, precisamos de evolução", sustentou Blatter, com toda a seriedade, diante dos dirigentes, oferecendo-se como o nome inovador para uma "Fifa forte", que precisa ser protegida (por ele) de interferências políticas. Como é que é? Justamente ele quer reformar um sistema que tem sido moldado e influenciado por ele mesmo, durante décadas? Assim, como se ele não tivesse nada que ver com essa Fifa que está aí? Desconexão com a realidade é elogio num caso como esse.

E, mesmo assim, o mundo bizarro da Fifa é bem real. Um mundo onde um presidente em exercício provavelmente nunca deixará o cargo derrotado numa eleição porque mantém o seu eleitorado com cargos e doações de vários milhões de dólares. Um mundo no qual há influentes e ricos "coletores de votos", como o xeque Ahmad al-Sabbah, que, em troca de sua lealdade a Blatter, tem as melhores cartas para ser escolhido seu sucessor em quatro anos.

Ambos trocavam abraços e demonstravam no palco do congresso a certeza da vitória – antes mesmo da eleição. A Fifa, uma democracia? Está mais para uma monarquia com sucessão hereditária. Uma "Seppocracia". Depois que ele finalmente foi novamente entronado, digo, eleito – porque seu desistiu de um segundo turno –, Blatter festejou a si mesmo: "Let's go Fifa, let's go Fifa! Eu sou o presidente de todos vocês".

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